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Terça-feira, 27 de Maio de 2008

Alimentos escondem crise da água.

 

 

“É preciso 40 litros de água para chegar a uma fatia de pão. Explosão das economias emergentes promete agravar a crise.”


A crise alimentar esconde outra mais inquietante: a da água. Segundo os especialistas, mais de 70% da água potável disponível no mundo é consumida pela agricultura. É assim em Portugal, mas a realidade tende a piorar quando se viaja até África, o continente mais fustigado pelas secas, ao Médio Oriente, onde o acesso à água é uma luta secular, e à Ásia, onde a alteração de paradigma económico e social para um modelo semelhante ao ocidental – capitalista, de mercado – está a conduzir à mudança “radical e rápida” dos hábitos alimentares e de vida de milhões, pressionando ainda mais o uso crescente de água (e energia) para produzir comida e outros bens. Por cima disto, surgem as alterações climáticas, por baixo o desperdício, apontam os peritos.

“A crise da água está escondida na alimentar. Se nada mudar, a água terá um papel a desempenhar, como hoje tem o petróleo. Isso exige uma maior consciência de todos – governos, cidadãos, empresas – quanto ao uso mas também face às alterações profundas necessárias para garantir que a água chega para todos”, sustenta Daniel Zimmer, director-geral do Conselho Mundial da Água, plataforma sedeada em Paris que agrega 300 agências públicas centrais e regionais, empresas privadas e centros de investigação, em 60 países.

Em entrevista ao Diário Económico, Zimmer observa que “visto de cima, parece que o globo não tem problemas de água”. “Mas se olharmos para situações concretas, regionais, vemos que as coisas estão a mudar rapidamente: a dieta diária de uma pessoa na China está cada vez mais parecida com a de um ocidental. Se há mais dinheiro, milhões de pessoas que agora vivem em grandes cidades vão querer comer mais carne – já acontece. É legítimo, mas significa consumir bastante mais água. Se nada mudar, será insustentável”, observa.

John Anthony Allan, professor e investigador do King’s College de Londres, introduziu, em 1993, o conceito da “água virtual”, que mede o valor económico do líquido: quanto mais complexo (intenso em calorias) for um alimento, mais água é preciso para produzi-lo. Zimmer aponta um exemplo: “um quilo de cereais pressupõe o uso de mil litros de água; um quilo de carne requer quatro a 14 vezes mais”. Um pacote de batatas fritas 185 litros.

É por isso que as economias emergentes se tornaram no epicentro do problema. Antes, o consumo de água, comida, energia não era disputado às economias avançadas. Hoje, há migrações em larga escala. “As pessoas estão a deixar o campo e procuram trabalho na cidade. Isto gera desequilíbrio: há menos gente a produzir e mais a comer, com uma dieta mais rica”, observa o director-geral do CMA. “É visível nos ‘stocks’. Entrámos numa nova era: nos últimos dez anos, o consumo foi sempre superior à produção, excepto em 2004”.

“Um factor importante nesta situação cada vez mais deteriorada é a contínua migração para as cidades”, designadamente “para metrópoles gigantes”, sublinhou Helmut Türk, juiz do Tribunal Internacional para o Direito do Mar, num seminário na Universidade de Brasília. Segundo o magistrado, em 12 anos (em 2020) “o fluxo de pessoas levará a um aumento de 40% no consumo doméstico de água” nos países em desenvolvimento. Actualmente, a Organização Mundial para a Alimentação e Agricultura (FAO) estima que esse uso ronde os 7% nas economias asiáticas; na Europa e América do Norte a parcela vale quase o dobro.

Mas os especialistas observam o outro lado da moeda: a falta de eficiência na oferta. João Levy, da Associação das Empresas Portuguesas do Sector do Ambiente (AEPSA), defende que a implementação em Portugal de um sistema de “reutilização de águas residuais vai permitir poupar um terço da água para fins domésticos”. “O Governo português já deveria ter avançado com uma medida que obrigasse à reutilização destas águas”. “No fundo trata-se de combater o desperdício alimentar já que 50% do que é produzido fica pelo caminho”. Como se consegue? “Mudando hábitos, responsabilizando pessoas, controlando o consumo desregrado, a obesidade”, atira Daniel Zimmer.

João Levy propõe a filtragem de água do mar para a agricultura e indústria. A dessalinização é dos processos em que se devia apostar já que o custo é ligeiramente superior ao da produção de água doce através dos métodos tradicionais, defende. Mas entidades como o Fundo Mundial da Vida Selvagem advertem que a tecnologia, como já tem Espanha, EUA e vários países árabes – no total, há 10 mil centrais de dessalinização no mundo –, é cara, consome muita energia e é poluente em CO2.


O que contribui para a escassez

Agricultura
: em média, consome 70% da água doce disponível no mundo. Pelos dados da FAO, na Europa a agricultura rouba 32% do total, enquanto na Ásia essa percentagem sobe para quase 90%.

Indústria: A indústria – transformadora, química, alimentar e do papel – é a segunda maior consumidora da água doce disponível. São necessários 117 litros para produzir cada quilo de tecido.

Desperdício: quase toda a água usada no consumo doméstico, agricultura e indústria vai para esgotos. As “águas cinzentas” que sobram dos banhos, lavagens, regas, etc. não são reutilizadas.

Alterações climáticas: além das secas e cheias, o aumento da temperatura da água e a contaminação salina das reservas resultarão em menos água potável.

Mudanças de dieta:  as economias emergentes, como a China, estão a alterar rapidamente os seus hábitos alimentares, pressionando o uso crescente de água e energia para produzir alimentos.


As três crises que afectam o mundo

1 - Petróleo a caminho dos 150 dólares

Desde que tocou pela primeira vez nos 100 dólares, em Janeiro, o petróleo já valorizou 34%, chegando aos 130 dólares por barril na semana passada. Especulação, aumento da procura, especialmente por países como a Índia e China – não acompanhada por mais oferta – e desvalorização do dólar face ao euro têm estado nos primeiros lugares do rol de motivos que contribuem para a alta do crude.

2 - Matérias-primas em máximos
Tradicionalmente um refúgio em tempos de crise, os preços de matérias-primas como os metais preciosos, o carvão, o cobre ou mesmo os cereais têm sido projectados para máximos quase diários. Nomeadamente o ouro que há dois meses quebrou a barreira dos mil dólares a onça. Entre as razões que mais empurram os preços destacam-se as pressões da procura mundial e a subida do preço do petróleo.


3 - Preços dos alimentos continuam a subir

Há três factores essenciais na origem desta crise: o desvio de cereais para a produção de bio combustíveis, os limites à exportação impostos pelos grandes produtores de cereais e o crescimento de grandes países como a China e a Índia – que implica maior consumo. Dados do BCE mostram que, combinados, o contributo dos alimentos e do petróleo para a inflação nunca foi tão alto, na história da moeda única: ultrapassa os 60℅.
 
Luís Reis Ribeiro com Sara Piteira Mota
 
Diário Económico 27/05/2008

 

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publicado por Luis Pereira às 01:06
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Sábado, 3 de Maio de 2008

O FANTASMA DA FOME GLOBAL

 

A subida mundial dos preços alimentares é um tema dramático. Os jornais trazem previsões aterradoras e notícias de revoltas populares contra o preço da comida. Regressam os medos de fome global, 200 anos após Malthus. Para lá das vulgarizações mediáticas, as médias mensais mundiais publicadas pelo FMI  mantêm-se preocupantes.

 

Desde o início de 2007 até ao mês passado o preço do trigo aumentou 124%, o do arroz 85% e o do milho 41%. A subida não é só de cereais, porque o azeite aumentou 90%, óleos de soja e de palma 108%, banana 61%, laranja 54%, cacau 56% e café 52%. A energia também está muito cara, com o carvão a subir 140% e o petróleo 90%, como os metais: chumbo 81%, ferro 66%, cobre 48%.

 

Curiosamente, os preços que mais caíram são alimentares: carnes de vaca e porco desceram 10%, a média do peixe 7%, camarão 15% e o chá 1%. Mas as subidas são impressionantes. No arroz e trigo, os bens mais sensíveis, os aumentos são os maiores dos últimos 25 anos. Os efeitos são já dramáticos, com a fome a surgir em certos locais.

 

A comida naturalmente apaixona o mundo e os especialistas, gerando teorias contraditórias. A tese de Malthus em 1798 previa escassez e carestia crescentes. Esta ideia, depois rejeitada, renasceu nos movimentos ecologistas. Entretanto surgiu uma teoria com a consequência oposta. A "tese Singer-Prebish" de 1950 supunha uma "degradação dos termos de troca", com os preços das matérias-primas a descer face aos produtos industriais, o que exploraria os países pobres.

 

A verdade é que os preços dos alimentos sofrem muitos e complexos impactos. Se os limites físicos e ambientais serão sempre determinantes, como disse Malthus, as impressionantes melhorias tecnológicas nas culturas e detecção de jazidas contrariam esses limites. O resultado tem sido uma flutuação intensa sem tendências seculares definidas.

 

Qual a origem deste surto altista? Uma causa imediata é a queda do dólar. Em euros, as subidas são bem menores (trigo 88%, arroz 55% e milho 19%) mas ainda significativas e no trigo mantêm-se as mais elevadas no registo. Por outro lado, descontada a inflação, os preços, mesmo em dólares, ainda estão bastante abaixo dos valores do início dos anos 80. As matérias-primas registaram uma tendência decrescente nas últimas décadas, agora invertida. O fantasma global ainda vem longe.

 

A atenção mediática centra-se em alguns efeitos pontuais. Nervosismo internacional, maus anos agrícolas e instabilidade sociopolítica local hão-de passar.

 

Também a famigerada especulação, supostamente dominante, só de vez em quando surge para ficar com as culpas.

 

Muito mais importantes são as duas forças decisivas: o mercado e a lei. A razão principal desta situação é algo excelente: o recente desenvolvimento das regiões pobres aumentou a procura de alimentos. Isso significa que a fome está a descer, não a subir.

 

Curiosamente, agora que os preços alimentares estão altos, os activistas protestam em nome dos pobres consumidores, enquanto antes, quando estavam baixos, protestavam em nome dos pobres produtores. Como sempre, a subida de preços criará a correcção de mercado. Novos investimentos nesses sectores, desencorajados nos anos de preços baixos, tenderão a prazo a reduzir a carestia.

 

Se a política o deixar, claro. Os mercados agrícolas e alimentares são dos mais espartilhados e regulamentados. Os governos, convencidos que apoiam e promovem, criam enormes bloqueios e distorções, de que a política agrícola europeia é um exemplo terrível. As negociações globais de liberalização da Organização Mundial do Comércio estão moribundas sobretudo por causa do dossier agrícola. Às pressões rurais juntaram-se agora as ambientais, com a opção pelo biodiesel a justificar novas manipulações.

 

Desde o tempo de Malthus que as boas intenções políticas, impedindo importações e manipulando preços, geram episódios de escassez.

 

A melhor solução para a carestia seria a liberalização.

 

Mas como a comida apaixona o mundo, não há grandes esperanças.

 

João César das Neves

professor universitário

 

 

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publicado por Luis Pereira às 21:23
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