
Vem da noite dos tempos a ideia de que, contra o que diz a religião, nem todos os homens nascem nus, livres e iguais. Intitulando-se superiores por emanação divina, anteriormente, e agora superiores por motivos bem mais terrenos, sempre houve homens certos de terem nascido para ser líderes, pais, salvadores. César, Kaiser, Czar, Caudillo, Fuehrer, Duce, PM e PR são algumas das designações usadas, ao longo da História, por aqueles "eleitos" para determinar a sorte dos seus concidadãos.
O desígnio de Deus inicial veio a ser substituído, em democracia, pelo direito ao voto, que, em teoria, excluía à partida a fatalidade da casta dos predestinados. Mas a verdade é que, com frequência maior do que seria saudável, os eleitos, depois de o serem, assumem tiques dos Césares.
E foi por isso que, tendo o projecto da Constituição Europeia sido chumbado em dois países, através de referendo, os novos Césares da UE gritaram "Alto aí! A democracia é coisa demasiado séria para ficar à mercê de milhões com direito a voto. A democracia deve ser representada por uma minoria que à nascença foi bafejada pelo hálito dos deuses. Nós, os governantes! Porque somos os predestinados, os iluminados, os ungidos, os que realmente sabem o que interessa aos europeus. Vamos, pois, ao plano B: o Tratado de Lisboa, que será aprovado só entre nós".

Apenas em um dos 27 a Constituição obrigava ao referendo. E, quando esperava eu que, como "eles" haviam prometido, ou o "sim" era unânime, ou o Tratado de Lisboa morria à nascença, o que se ouve? Que a aprovação parlamentar deve continuar, que o tratado não está morto, mas apenas nos cuidados intensivos, e que é possível entrar pela porta das traseiras da Irlanda dando-lhe qualquer coisa em troca de novo referendo. Parece brincadeira de crianças: "Não valeu, vamos jogar outra vez!". Mas, se a Irlanda se render e fizer novo referendo, juro que rasgo o meu cartão de sócio da democracia. O que recuso é juntar-me aos que gritam "Avé, Césares europeus!».
Sérgio Andrade
JN