
Aqui há uns tempos li nos jornais das Caldas que a Câmara se propunha intervir na reestruturação da nossa praça. Não sei, em boa verdade o que é que a nossa Câmara pretende fazer, mas há uma coisa que é evidente: o seu empedrado está seriamente deteriorado. O que eu tenho sérias dúvidas é que existam calceteiros que tenham unhas para aquilo.
Tenho visto aqui pelas Caldas uns tipos de cócoras a meter pedras na areia.
Aqui há dias andava aqui na Travessa do Parque, onde passo todos os dias, um brasileiro, que, por aquilo que observei, o que saiu das suas mãos foi calçada à brasileira e nem sequer em sonhos seria “à portuguesa”.
Aquela praça é das mais belas de Portugal. Foi desenhada por Celestiano Rosa, um condutor de obras públicas, (engenheiro), natural da Amoreira de Óbidos.
Aquela Praça (Rossio da Vila) era em terra batida e vinha, lá do tempo dos diabos mais velhos. Mas as pessoas estavam habituadas e achavam normal o pó e a lama. Só que, quando as Caldas se transformou em termas da moda a coisa não era muito bem vista e as entidades encararam a sério a hipótese de empedrar o Rossio. A Câmara não tinha capacidade financeira de o fazer, nem seria fácil arranjar quem a tivesse, e quisesse fazê-lo.
Já de há muito tempo se sonhava uma praça desafogada e livre. Por volta de 1834 tinha-se derrubado a capela de Nossa Senhora do Rosário, que ficava ao norte da praça com cemitério adjacente. Esteve ali anos à espera que retirassem as ossadas que só muitos anos depois foram depositadas no cemitério velho – o primeiro das Caldas – ao lado da Rua Nova (actual Rafael Bordalo Pinheiro).
Teriam sido tão pouco cuidadosamente colocadas que em 1925, uma notícia da Gazeta das Caldas, chamava a atenção para as ossadas que por lá andavam a pontapé e ao capricho dos cães que as farejavam.
Liberta a praça e retirado o pelourinho que foi colocado – o que sobrou – na parede da igreja de Nª Senhora do Pópulo, que ainda lá está – era preciso resolver o problema magno do seu calcetamento.
A título de curiosidade é interessante referir que a capela de Nª Senhora do Rosário, antes do seu desaparecimento, há muito que estava secularizada. Alguns cronistas se lhe referiram com criticas azedas, pela igreja ter a porta aberta e nela se recolherem os vendedores, da chuva, continuando o seu negócio dentro da capela. Deveria ter sido com grande pena que viram desaparecer esse abrigo e o seu alpendre, sempre cheio.
Limpo o chão do cemitério, aberta a rua que limitaria a Praça e que ainda hoje se chama Rua do Rosário, estava tudo pronto para o seu calcetamento.
Problema grave, cuja solução foi muito simples.
O grande ganadeiro Faustino da Gama, quando começavam as corridas de touros, tinha de matar os touros e vender-lhe a carne e isto, evidentemente, só no verão, dado as corridas começarem pela Páscoa e acabarem em Outubro. Rigorosamente também em que as Caldas tinha muita gente. Tinha praticamente o monopólio desse comércio. Adivinhava-se um grande perigo
financeiro, quando se começou a vender carne de vaca nos talhos, que até aí só vendiam carne de porco. Não se pensava em monopólios, mas o Faustino da Gama pensava nisso, para segurança do seu negócio e certeza de futuros.
Sem lhe passar pela cabeça que alguém lhe pudesse valer por dinheiro achou que alguém se pudesse sensibilizar pela dignificação da terra. E foi por isso que ofereceu à vila o empedrado da Praça. Levou mais de mil carros de bois, carregados de pedra.
Tinha como conselheiro um engenheiro que lhe orientava os seus bens, chamado Celestiano Rosa; homem de grande valor que nas Caldas se notabilizou com o desenho e direcção do delicadíssimo empedrado da Praça e projecto do lindo Teatro Pinheiro Chagas, primeira versão.
A dúvida que tenho, quanto à reclassificação desse empedrado, é que tenho visto que os calceteiros de hoje não têm a noção exacta da calçada à portuguesa. Em primeiro lugar a pedra utilizada antigamente era o calcário – branco – e o basalto – negro. A rocha eruptiva preta não é facilmente substituída, mas o calcário tem sido substituído pelo vidraço, que é uma pedra inferior. Mas o que tenho verificado é que os calceteiros não partem a pedra como dantes era a regra. As pedras eram mais pequenas e ao parti-las os calceteiros antigos faziam-no de molde a que a parte de baixo fosse mais larga, isto é encostassem umas às outras de modo a formarem uma parede inferior horizontal. Isto dava como resultado que a calçada, aberta em espaços preenchidos com areia, esta compactava com a chuva, e quanto mais chovia mais a calçada ficava firme. Hoje qualquer chuvada leva as pedras consigo, porque estas são mais curtas a mais largas em cima do que em baixo.
Além disso estas pedras, fornecidas pelas máquinas, são muito grandes, e têm, por consequência, menos espaços intervalares por metro quadrado e por isso menos compactação.
Gostava muito de ver aquela calçada restituída à sua beleza original, mas tenho receio que não saibam - ou não queiram – fazê-la e quase me apetecia dizer que a deixem estar como está, que ao menos ainda nos lembra o tempo em que as pessoas sabiam trabalhar bem e tinham gosto em fazê-lo.
Esta praça tem etapas históricas muito significativas. A primeira é a criação do Rossio da Vila por Mariana Vitória, esposa de D. João V que veio aos banhos das Caldas treze vezes em pouco mais de 2 anos. Esta senhora comprou um lote de pequenas casas, do lado em que está o bonito edifício da Câmara, que ela mandou construir, e que tem a data de 1750, bem como as casas do topo da Praça onde está o Café Bocage, que alojaram a corte. Neste prédio foi feita mais tarde uma ligação aérea à Capela de S. Sebastião, uma solução de muito mau gosto, que destruiu boa parte dos belos azulejos, obra nefasta dos tempos de D. Maria I, para ir ouvir missa.
Mas principalmente o que esta praça foi sempre foi a fornecedora dos frescos que a população das Caldas e arredores comia.
Foi sempre de uma fartura bendita. Até 1905 lá se vendia de tudo. Nessa data, a Câmara proíbe aqui a venda de peixe, fresco e seco, dos animais vivos, da cal, das sementes, dos artefactos para a lavoura e reserva um espaço grande para a venda da olaria e da cerâmica. Nessa data construída a Praça do Arneiro da Choca – hoje Praça 5 de Outubro – passou para lá, o peixe, que deu nome popular à Praça (ainda hoje conhecida por Praça do Peixe), os produtos da agricultura que exigiam muito espaço, como por exemplo as melancias que formavam montanhas, os cabos de enxada, a cal, largamente consumida na brancura das casas e que vinha da Serra do Bouro, o Azeite aqui vendido pelos negociantes do mesmo, em potes enormes, de barro e folha, tirado pela boca com as medidas desejadas.
Ficaram aqui as mulheres das cavacas, as dos pinhões, das pevides e dos tremoços, e ainda o Marcelo das galinhas que vendia as aves aos bocados e o homem do sebo para iluminação e protecção das botas.
Hermínio de Oliveira – Jornal das Caldas