
Há episódios que fazem desconfiar se em Portugal vigora um Estado de Direito. Quando camionistas dispostos a arrancar apoios subtraídos ao dinheiro dos contribuintes impedem colegas seus de cumprirem compromissos profissionais, no uso legítimo da liberdade de não aderirem ao protesto, esperava-se que as autoridades fossem menos tolerantes. Mas não foi isso que sucedeu nos últimos dias.
Perante a passividade de quem devia proteger os cidadãos, já se assistiu a suficientes eventos para se acreditar que há lei mas não há vontade ou capacidade para a impor. Vai havendo um pouco de tudo. Desde a destruição, impune, de uma plantação de milho transgénico à barbaridade da inutilização, na lota de Matosinhos, de peixe que estava destinado a ser entregue a instituições de solidariedade social.
Durante o bloqueio dos camionistas, veículos foram apedrejados e bens perecíveis foram colocados em risco de esgotarem a sua validade. Um pouco por todo o lado, imperou a lei do mais forte. E o mais forte foi, neste caso, o grupo de camionistas que preferem o conforto das ajudas públicas a adaptarem-se, como as empresas de outros sectores e as famílias, às mudanças que se operam no mercado. Quanto mais o Estado se demite das responsabilidades de proteger a propriedade e a paz pública, maior o poder de quem tenta impor os seus pontos de vista através da chantagem e da ameaça de paralisar toda a sociedade.
Entre as patuscadas à beira da estrada, os intervalos na agitação para ver os golos de Cristiano Ronaldo e companhia e as ameaças dos camionistas de optarem por meios de pressão mais expeditos, o Governo decidiu actuar com cautela. Optou por manter negociações e avaliar a possibilidade de fazer cedências, deixando a corda esticar. A escassez de bens alimentares e de combustíveis foi a factura que o País foi forçado a pagar pelo bloqueio e pelo cuidado do Executivo em evitar que o uso da força para restabelecer a normalidade significasse o resvalar da situação para o confronto e a violência. A faca tem dois gumes. É útil para preservar a imagem do Governo no imediato, mas planta um factor de desmoralização que envenena a confiança nas instituições, ao criar o sentimento de que o Estado é forte com os fracos e fraco com quem tenha os meios para aparentar ser forte.
Estas histórias costumam terminar com decisões ligeiras que abrem os cordões à bolsa dos recursos que, por serem públicos, não são de ninguém. No célebre "buzinão" que abanou o último Governo de Cavaco Silva, o conflito só foi superado quando a lógica sensata da aplicação de taxas mais elevadas a veículos que, por serem da categoria de pesados causavam mais desgaste na Ponte 25 de Abril, foi atropelada sem apelo, nem agravo. Desta vez, não será diferente.
Entre abatimentos no IRC, a possibilidade de apenas liquidar o IVA quando as facturas são pagas e outros benefícios saídos dos generosos bolsos dos contribuintes, espera-se que tudo regresse à normalidade. Espera-se. Porque nada impede que, perante a previsível persistência da cotação do petróleo a níveis elevados, outros sectores, ou os mesmos, não venham a tentar a sua sorte, animados pelos bons resultados alcançados pelos camionistas.
João Cândido da Silva
Jornal de Negócios